Apenas 0,2% da Alta Liderança, Executivas com Deficiência Rompem Barreiras
Publicado em: 22/12/2025
Fonte e reprodução: forbes.com.br por Mariana Krunfti
Mulheres com deficiência continuam praticamente invisíveis nos cargos de alta liderança no país. Dados do Instituto Ethos (2024) mostram que elas representam apenas 0,2% desse grupo, e apenas 0,4% dos membros de conselhos de administração. Executivas como Daniela Bortman (head de medicina ocupacional da Bayer), Daniela Sagaz (head de diversidade da Mondelez), Katia Regina (diretora de remuneração da Nestlé Latam) e Isa Meirelles (líder de comunicação interna do Google no Brasil) subiram sem referências, mas querem mudar esse cenário. Além do viés social, estudos mostram que ampliar a diversidade na alta liderança é também um imperativo de competitividade e inovação.
Filha de profissionais da área da saúde, Daniela Bortman sempre quis ser médica. Porém, durante a faculdade, aos 23 anos, sofreu um acidente que a deixou tetraplégica e ameaçou sua vida e carreira. “Fui impedida de retornar depois do meu afastamento”, relembra. “O reitor dizia que eu não poderia mais ser médica e justificava dizendo que ‘nunca tinha visto nenhum médico assim antes’”.
Depois de entrar com uma ação judicial para obrigar a universidade a fornecer as condições necessárias para que pudesse concluir o curso, tornou-se a primeira pessoa tetraplégica a se formar em medicina no Brasil. Hoje, head de medicina ocupacional na Bayer no Brasil, está entre os 0,2% de executivas com deficiência em cargos de alta liderança no país, segundo levantamento do Instituto Ethos, de 2024.
O estudo analisou dados das 1.100 maiores empresas do Brasil e também apontou que mulheres com deficiência representam apenas 0,4% dos profissionais em conselhos de administração. “Quando pensamos em CEOs com deficiência em grandes empresas no Brasil, não temos nenhuma mulher”, diz Carolina Ignarra, CEO e cofundadora da consultoria Talento Incluir, com foco em treinamento e recrutamento de profissionais com deficiência. “As mulheres com deficiência que ocupam cargos de CEO geralmente estão à frente das próprias empresas.”

Apenas 2% dos profissionais que se declaram com deficiência ou neurodivergência ocupam posições de diretor, vice-presidente ou presidente, segundo a pesquisa Radar da Inclusão 2024, conduzida pela consultoria, que entrevistou 1.230 pessoas.
Mas a falta de referências não impediu outras executivas de buscarem caminhos e abrirem as portas para as próximas gerações. Daniela Sagaz, head de diversidade, equidade e inclusão na Mondelez Brasil, é uma delas. A executiva, que nasceu com uma deficiência física no braço, se formou em psicologia, seguiu carreira em recursos humanos, trabalhou durante 12 anos na multinacional BAT, passando também pelas operações do Chile e de Cuba, até chegar na Mondelez. “Saber que faço parte desse percentual tão pequeno de pessoas com deficiência em cargos de liderança já é uma grande conquista. Mas não é algo que quero guardar só para mim”, diz. “Quero mostrar que é possível, que não estamos nas empresas apenas para cumprir cotas, mas porque temos competência e entregamos resultados.”
Depois de chegar lá, Katia Regina, diretora de remuneração e benefícios da Nestlé na América Latina, assumiu a missão de puxar mais mulheres com deficiência para a liderança. A executiva sobreviveu a uma tentativa de feminicídio aos 40 anos e ficou paraplégica. “Passei por toda aquela fase de negação. Depois, pensei: ‘Se essa é a minha nova condição, eu vou honrar a minha vida’”, lembra a executiva, que começou na Nestlé como estagiária de fábrica, há 21 anos. “Comecei a entender melhor o mundo da pessoa com deficiência e percebi que tinha que falar sobre o tema, me posicionar dentro da empresa e advogar sobre por que é importante ter pessoas com deficiência em cargos de liderança.”
Isa Meirelles, líder de estratégia de comunicação interna do Google Brasil, também é pioneira na sua área. A gerente nasceu com glaucoma congênito nos dois olhos e perdeu a visão do olho esquerdo ainda criança, o que de alguma forma interferiu nas suas escolhas de carreira. “Sempre tive um ‘holofote natural’, porque tenho uma deficiência visível. As pessoas olham, perguntam e querem saber o que eu tenho. Ninguém nunca me deixou ser tímida”, lembra. “Foi aí que pensei: se é algo inevitável, vou desenvolver essa habilidade de comunicação.”
Formada em relações públicas, iniciou a carreira em produção cultural, para depois seguir para o mercado de tecnologia, onde trabalha há mais de dez anos. No Google, está há quase cinco. “Hoje, uma das minhas missões é tornar a comunicação e o mercado de trabalho mais acessível para pessoas com deficiência.”

A executiva de recursos humanos Ana K Melo foi a primeira pessoa com deficiência a se tornar sócia da XP Inc. e a ocupar a primeira cadeira 100% focada em diversidade no mercado financeiro brasileiro em 2021 (as então existentes acumulavam outras funções de RH). Depois da passagem pela companhia, foi head de RH da Diageo e hoje atua como consultora independente. “Antes, eu olhava para o lado, para cima e para baixo, e não tinha ninguém”, conta. “Hoje, se eu pegar um binóculo e olhar longe, consigo reunir algumas mulheres com deficiência no mundo corporativo.”
Além das executivas entrevistadas pela reportagem, Carolina Ignarra, da Talento Incluir, destaca outras executivas com deficiência de destaque no país. “Temos a Mirella Prosdocimo, conselheira remunerada no Comitê Paralímpico e mulher tetraplégica; a Lisandra Alcebiades, diretora de suporte e estratégia da Medtronic, multinacional de tecnologia, serviços e soluções médicas, que não tem metade de um braço e trabalha em uma área extremamente técnica.”
Ignarra também menciona a trajetória de Eliane Ranieri, mulher cadeirante contratada há quase 40 anos pela IBM e pioneira em cargos de liderança no mercado corporativo brasileiro. “Ela entrou como atendente de call center bilíngue, trabalhou 33 anos na empresa e saiu como diretora de diversidade e inclusão”, conta Ignarra. “Hoje, aos 67 anos, ela trabalha no time da Talento Incluir.”
Na medicina, Bortman também destaca como referência Isabel Maior, de 71 anos, professora aposentada da UFRJ e a primeira pessoa com deficiência a liderar a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. “Ela tem limitações físicas importantes, é cadeirante, mas representa de forma muito clara o quanto o corpo vai onde a cabeça alcança.”
O poder das referências
Apesar das poucas referências, ou mesmo nenhuma, em suas trajetórias, as executivas destacam a importância de se ter para onde olhar. “Como é que a gente sonha com um lugar onde a gente não se vê?”, questiona Ignarra. “Como uma mulher cega ou surda se imagina nesse lugar?”
A cofundadora da Talento Incluir e Ana K Melo organizaram um jantar na última semana com 30 mulheres com deficiência que atuam no corporativo e fizeram um exercício em que elas deveriam pensar na posição mais alta que já sonharam para si mesmas. “Muitas pensaram em gerência. Pouquíssimas pensaram em diretoria. Uma ou duas falaram CEO — e, mesmo assim, CEO do próprio negócio, não dentro de uma grande empresa”, conta Melo. “Isso acontece porque o mercado diz o tempo todo para nós que não é possível.” A executiva lembra de quando passou pela amputação da perna, aos 18 anos, e ouviu ainda no hospital: “Olha que maravilha, agora você vai poder se aposentar.”
Por que diversidade importa
A diversidade já se mostrou uma aliada de bons resultados nos negócios. Segundo um estudo de 2023 da consultoria global McKinsey, empresas com representação feminina superior a 30% têm uma probabilidade significativamente maior de superar financeiramente aquelas com 30% ou menos. Da mesma forma, as empresas com representação de diversidade racial superior a 30% mostram uma vantagem financeira média de 27% sobre as demais.
Com pessoas com deficiência, não é diferente. Segundo uma pesquisa da Accenture em parceria com a AAPD (Associação Americana de Pessoas com Deficiência), as companhias que lideram a inclusão desses profissionais geram mais receita e lucro. “Hoje, sou muito mais empática, resiliente, adaptável e flexível do que era antes de me tornar uma pessoa com deficiência”, diz Katia Regina. “A experiência que vivi me deu capacidades que não se aprendem em curso nenhum.”
A executiva destaca a importância da diversidade especialmente nos cargos de liderança. “Só conseguimos oferecer produtos e serviços adequados quando temos consumidores diversos participando das decisões”, afirma. “Precisamos de pessoas com deficiência em lugares de poder, porque é na tomada de decisão que a realidade muda”, acrescenta Meirelles.
Da base para a liderança
Há 34 anos, a Lei de Cotas obriga que empresas com 100 ou mais funcionários no Brasil destinem de 2% a 5% das suas vagas para pessoas com deficiência. Mas a maior parte das vagas afirmativas e iniciativas de inclusão para esses profissionais ainda é concentrada em cargos de base, que muitas vezes ficam restritos a posições operacionais ou administrativas. “Muitas pessoas com deficiência não têm ambição de carreira porque são colocadas em posições onde não existe perspectiva de crescimento”, explica Bortman.
Ana K Melo viveu isso mais de uma vez no início da sua carreira. “Nas funções que me colocavam, eu não tinha meta ou escopo. Tirava xerox de documentos de admissão”, lembra. Quando entrou na XP, decidiu se posicionar sobre a situação. “Falei para o diretor de pessoas que odiei minha experiência e ele perguntou o que eu faria diferente. Respondi ‘um monte de coisas’. Ele disse: ‘Então faz’. E fiz.”
Segundo a pesquisa Radar da Inclusão 2024, 63% das pessoas com deficiência nunca tiveram uma promoção ao longo da carreira. “Muita gente pensa que uma limitação física significa menor performance. Mas contratar uma pessoa com deficiência não deveria significar baixar a régua. Se a régua precisa baixar, isso não é inclusão”, diz Bortman.
Meirelles, que só foi se reconhecer como pessoa com deficiência aos 25 anos, percebia no dia a dia que a palavra “deficiência” também carregava um teor de “ineficiência”. “Era como se eu precisasse compensar minha deficiência sendo altamente eficiente.”
A raiz do problema está na falta da acessibilidade atitudinal, conjunto de comportamentos, atitudes e práticas que eliminam barreiras que dificultam a participação plena de pessoas com deficiência. “Ainda há muita gente que acha que acessibilidade é só rampa, elevador e ferramentas adaptadas”, afirma Sagaz. “Mas o que falta é a forma como pessoas e líderes enxergam, tratam e se relacionam com profissionais com deficiência.”
Podemos esperar mais mulheres com deficiência na liderança?
Enquanto existem projeções para alcançar a equidade de gênero — segundo o Fórum Econômico Mundial, mais de 123 anos —, a inclusão efetiva de pessoas com deficiência ainda parece mais um sonho distante para as executivas. “Quando uma pauta não é mensurada, ela fica ‘embaixo do tapete’”, diz Sagaz.
No curto e médio prazo, Katia Regina não enxerga mudanças efetivas. “As lutas pela igualdade de gênero e racial estão aí há décadas e ainda enfrentamos casos gravíssimos”, lembra. “Por isso, não espere a sociedade mudar para se posicionar. Comece por você, fortalecendo-se para enfrentar o que precisa ser enfrentado, com força, respeito e capacidade de movimentar outros.”
Meirelles avalia que o envelhecimento da população brasileira também pode influenciar o cenário da inclusão de pessoas com deficiência na liderança. “Envelhecer traz deficiências, e a Europa já está vivendo essa intersecção entre lideranças seniores”, afirma. “Acho que o Brasil vai trilhar esse caminho também. Vamos falar de etarismo e capacitismo ao mesmo tempo, e isso pode impulsionar transformações dos dois lados.”
Enquanto isso, o caminho, segundo as executivas, é continuar abrindo portas. “Se eu tiver uma vaga na minha equipe, vou buscar uma pessoa com deficiência. Não significa contratar apenas pessoas com deficiência, mas durante anos elas nem sequer eram vistas. Por que não priorizar agora?”, diz Katia Regina. “É preciso criar oportunidades, capacitar essas pessoas e prepará-las para cargos de liderança”, completa Sagaz.
(Fotos: Lu Aith/ Gabriela Garcia/ Divulgação)