Pequena crônica da opressão

Por Tuca Munhoz

Estive por estes dia numa loja especializada para ajustes na cadeira de rodas. Trata-se da mais tradicional loja desse segmento de produtos de São Paulo. Creio que do Brasil.
O casal proprietário tem uma visão bastante avançada sobre a questão da deficiência e acompanha o movimento há mais de 20 anos.
No entanto, observei entre os funcionários,  alguma dificuldade em lidar com uma pessoa com deficiência que sabe o que quer e que entende e domina as tecnologias que utiliza.
Há uma forte tendência, mesmo entre profissionais da área, em ouvir, e acatar, a opinião e sugestões das pessoas com deficiência. Um dos técnicos chegou a perguntar na minha frente, para a fisioterapeuta – “será que ele quer assim…?”
Mas, o que de fato me chocou e indignou foi outra situação.
Enquanto aguardava meu atendimento uma moça com paralisia cerebral, acompanhada da mãe e de uma terapeuta ocupacional, testava um andador. Era um andador enorme, um trambolhão.
A moça tinha uma grande dificuldade em caminhar, mesmo com o andador. Caminhava muito devagar e com bastante instabilidade.
Foi fácil observar que essa moça nunca irá andar a contento com esse equipamento. O máximo será diminutas caminhadas em locais absolutamente amigáveis, como sua casa.
Mesmo num shopping, onde o piso é propício, quando seco, ela terá dificuldades, pois para percorrer um pequeno trecho ela demorará um tempo enorme.
Cheguei, muito discretamente, junto à mãe dela e com jeitinho fiz esses comentários acrescentando que uma cadeira motorizada proporcionaria muito mais qualidade de vida à moça.
A mãe me disse que para chegar àquele ponto, ou seja, caminhar com grande dificuldade, a moça já havia passado por dez cirurgias.
Quanta dor, quanto sofrimento, quanta expectativa para chegar a um resultado nulo. Na verdade a tentativa de um resultado que a aproximaria da normalidade, tanto na postura física, o estar em pé, como no deslocamento, andar ereto e trocando passos.
Conversei também, um pouco menos discretamente, com a terapeuta que a acompanhava, funcionária da loja.  Ela compreendeu bem minha argumentação, concordou. Mas, disse que a moça já veio com uma prescrição médica e que a mãe assim o queria. Disse também que chegou a citar a praticidade da cadeira motorizada, mas que a mãe não aceitou. “quer que a filha ande”, me disse.
Toda essa situação me causou enorme indignação! A moça, numa cadeira motorizada, teria mais e melhores condições de mobilidade, de autonomia, de independência, de emancipação. Mas, naquele andador não teria nada disso. Apenas reforçada sua incapacidade, sua dependência, sua submissão aos desejos da autoridade, a mãe, que representa nessa relação a grande autoridade que nos quer ver quadrados, encaixados nos padrões estabelecidos, que anula nossa vontade e desqualifica nossos corpos tortos.
A recente tentativa do governo federal em desmontar a legislação que viabiliza a inclusão de pessoas com deficiência do mercado de trabalho deixou bem claro que o modelo médico da deficiência ainda é forte e predominante. A crença de que o modelo social já havia ocupado esse espaço foi uma ingenuidade, uma ilusão. O que, aliás, foi bastante útil para os “mercadores da inclusão”, vendendo o peixe que tudo estava resolvido, e que apenas alguns ajustes, sensibilizações, capacitações resolveriam todos os problemas.
O buraco é mais embaixo, bem mais embaixo. O Modelo Social veio à luz, mas não venceu, e apenas a nossa luta e posicionamento assertivo, pessoal e coletivamente, pode mudar essa realidade.
Abaixo a normalidade!
Viva o Poder Aleijado!

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