Porque o 21×3 é apenas uma alteração genética – Por Lilian Rauld Campos*

Para Paz Carolina e Amelie, que moram no meu coração.

 

Se a Paz Carolina tivesse condições de entender bem as coisas do mundo externo a ela, nunca imaginaria que um dia comemoraríamos o Dia Internacional da síndrome de Down. Uma data que só há 9 anos foi definida pela Assembleia Geral das Nações Unidas para aumentar nossa consciência sobre o tema, e para nos lembrar de palavras tão importantes como são a dignidade, o respeito e a inclusão que todos nós seres humanos merecemos.

 

Na Grécia antiga, pessoas com deficiência intelectual eram abandonadas para morrer e outras eram afogadas. Já os romanos tinham leis para eliminá-las. Na Idade Média, na Europa Medieval, enquanto alguns associavam pessoas com deficiência à bruxaria, outros consideravam que estavam possuídas pelo demônio.

 

No século XIX surgiram as primeiras hipóteses que a Síndrome de Down (SD) poderia ser uma alteração cromossômica, e só em 1866, foi publicada e reconhecida pela primeira vez por John Langdon Down, como uma ‘entidade clínica’.

 

Quantas vezes escutamos, e pior ainda, verbalizamos a palavra ‘mongolóide’ para nos referir a uma pessoa com SD? Isto é devido a que o Dr. Down constatou que as crianças, cujos pais eram europeus, tinham características físicas semelhantes às da população da Mongólia.

 

Só hoje entendemos as implicações que essa palavra tão erradamente utilizada influenciou na discriminação das pessoas com SD.

 

A SD só foi reconhecida como uma síndrome genética em 1958 pelo doutor Jerome Lejeune. Ele relatou que crianças com síndrome de Down possuíam um cromossomo extra. Se o esperado são 46 cromossomos em cada célula, essas crianças tinham 47 cromossomos. E ao invés dos dois cromossomos 21 comuns, foram encontrados três cromossomos 21, surgindo então, o termo “trissomia 21”.

 

Ainda hoje, em pleno século XXI, persistem alguns mitos que envolvem a síndrome de Down. A SD é uma alteração genética, não uma doença, portanto não existe cura ou tratamento. Deve-se levar em conta também que as pessoas que a possuem não devem ser tratadas como doentes. Outro mito se refere ao comportamento dos indivíduos com síndrome de Down. Uns acham que eles são agressivos e outros tantos acham que são “carinhosos”, “fofinhos”. No primeiro e no segundo caso se materializam dois mitos de procedência comum. Não podemos, em hipótese alguma, generalizar os indivíduos que têm tal síndrome. Cada um possui características especificas que dependem, entre outros fatores, do ambiente familiar e social em que vivem. Fatores que, por sinal, caracterizam a todos nós – com ou sem a síndrome.

 

A Paz Carolina tem hoje 59 anos, nasceu com o cromossoma 21 triplicado ao invés de duplicado, o qual é a alteração genética causante da síndrome, por isso a data escolhida 21/3, que diz relação com a trissomia – 3 cromossomas – do par cromo somático 21. ​Ela é a irmã do meu pai, a penúltima de 12 irmãos. Na época em que ela nasceu, esta síndrome não era compreendida como hoje, e era um assunto do qual ‘evitavam falar’ na família. Nunca vi minha tia nos almoços familiares, quando todos juntos passávamos um domingo juntos. Ela estava no seu quarto, sozinha, escondida, sem socializar. Eu tinha a compreensão de que ela possuía uma deficiência, mas não sabia nada a mais. Só quando atingi os 12 anos, meu pai me explicou por que ela nunca estava conosco sentada na mesa.

 

Cinquenta anos se passaram, e meu primo teve sua primeira bebê, Amelie, que nasceu com o número ‘21’ triplicado há 4 anos. Amelie mora no Canadá com seus pais e seu irmão Jean. Amelie vai à escola. Amelie tem amigos. Amelie participa de todos os almoços familiares. Amelie está aprendendo espanhol e inglês. Amelie é modelo para uma agência de publicidade. Amelie é uma menina feliz.

 

Quando vejo Paz Carolina e Amelie, não posso evitar pensar em como suas vidas foram tão diferentes. Uma que não teve oportunidades neste mundo, outra que tem todas as portas abertas ao mundo.

 

Sem dúvida temos avançado muito no assunto, mas precisamos fazer mais, precisamos ir alem. Como? Através da educação, da conscientização, de abrir nossos horizontes para conhecer histórias e outorgar oportunidades para que as pessoas com SD possam ser inseridas na sociedade através do estudo e do trabalho. Por quê? Porque se trata de direitos humanos. Porque todos precisamos ter as mesmas oportunidades. Porque devemos ser respeitados e incluídos.

 

Porque o 21×3 é apenas um número, e todos somos iguais, sem importar o número de cromossomos.

 

*Lilian Rauld é Head de Diversidade e Inclusão da Sodexo On-site Brasil

 

Voltar para Artigos