Sou um homem negro com muitos outros marcadores sociais, por Sergio Gomes

Sou um homem negro, e quando essa época do ano se aproxima, eu passo a refletir mais profundamente sobre as questões da inclusão, do racismo, da aporofobia (aversão apobres), da minha deficiência e do meu lugar na comunidade LGBTQIAPN+ e como tudo isso afeta minha saúde mental e também de outras pessoas.
Em 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra ou o Dia de Zumbi dos Palmares. Zumbi foi um líder negro que governou o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, por mais de 20 anos, até ser assassinado e o Quilombo dos Palmares ser
destruído.
Há quem reclame e diga que a data deveria ser uma celebração à consciência humana. Mas a data não só nos faz lembrar e pensar sobre as pessoas negras e sobre o racismo e a luta constante contra esse mal que enfrentamos no cotidiano, a data é também uma provocação àqueles que estão dia após dia a minar, a sabotar ou mesmo destruir a boa convivência dos negros na sociedade. Falar em “consciência humana” pode parecer inclusivo, mas na prática, isso é ignorar as desigualdades a que as pessoas negras estão particularmente sujeitas.
Ao nivelarmos todas as experiências humanas, há o risco de invisibilizar o racismo estrutural.
Penso que já comentei em outra oportunidade sobre minha deficiência, ela é psicossocial. Em razão da esquizofrenia que me
acomete há mais de 25 anos. A esquizofrenia dificulta minha vida e me faz enfrentar uma série de barreiras quase diariamente,
assim como é a vida de todas as pessoas com deficiência. Há uma necessidade constante de me manter medicado e sempre vigilante para detectar o menor sinal de retorno dos sintomas.
Meu foco e também a atenção são bem ruins, minha memória também é afetada de forma negativa.
A interseccionalidade: É o conceito que reconhece como diferentes identidades sociais, geralmente ligadas a grupos minorizados, como mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, pessoas pobres, se entrelaçam em um mesmo
indivíduo. E quando duas ou mais dessas características estão presentes, há uma interseccionalidade que se mescla e produz
experiências únicas, que na maioria das vezes não são agradáveis.
Algo em que sempre penso e que nos últimos tempos tem me perturbado ainda mais, são as condições em que, nós, pessoas com deficiência e que somos atravessados, por exemplo, pela negritude ou que somos da comunidade LGBTQIAPN+,
somos tratados e acolhidos nas unidades da rede pública de saúde e eu não tenho motivos para acreditar que na rede privada as coisas sejam muito diferentes, até porque eu usei a rede privada por muito tempo, até que, por conta da minha idade, o plano de saúde se tornou impagável.
Profissionais de saúde deveriam acolher e cuidar das pessoas, principalmente as mais vulneráveis, mas parecem escolhe-las como os principais alvos do descaso e dos maus tratos. Por conta das minhas condições de saúde preciso ir regularmente ao psiquiatra e ao psicólogo. O psiquiatra é jovem, mas é um bom médico e parece ser uma boa pessoa, pelo menos na maior parte do tempo, mas há vezes em que é fácil perceber a falta de atenção às minhas queixas e relatos com que ele leva a consulta. Porém esse psiquiatra é o único na sua especialidade nesta unidade de saúde e, por isso, ele tem uma agenda muito concorrida e é difícil agendar as consultas no prazo que ele pede e em consequência é comum os pacientes ficarem sem medicação, uma vez que a maior parte dos remédios utilizados nesses tratamentos são controlados e exigem receitas especiais.
Outro dia fui eu quem fiquei sem medicação e precisei falar com uma das técnicas de enfermagem do setor de acolhimento da UBS (Unidade Básica de Saúde) e a má vontade e a cara de pouco caso da profissional ao lidar comigo, foram de matar.
Espero nunca mais passar por disso, mas vai acontecer, eu sei.
Ao iniciar a pesquisa para esse artigo, me deparei com alguns problemas e o principal deles foi a falta de dados, principalmente do governo, sobre as interseccionalidades entre raça, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, classe social e também deficiência.
A falta de informações sobre a vida das pessoas negras com deficiência no Brasil é resultado da discriminação interseccional ao mesmo tempo em que é uma das causas dessa mesma discriminação.
O racismo do dia a dia e as agressões e microagressões que vêm dele, o medo da violência policial, que não é uma paranoia ou um delírio, são fatos amplamente documentados não só em dados de entidades que lidam com o racismo e também com a
violência, há também os inúmeros casos documentados em vídeos pelas populações periféricas e que na maioria das vezes não resultam em qualquer punição aos responsáveis ou resultam em punições extremamente brandas. Tudo isso gera nas pessoas
com deficiência e também nas populações negras, ainda mais LGBTQIAPN+, um estado de hipervigilância que ajuda a
prejudicar bastante a saúde mental desses grupos agredidos e quando já existe uma predisposição a problemas de saúde mental as coisas ficam ainda mais complicadas.
Segundo dados do SINAN (Sistema de Informações de Agravos de Notificação) um sistema do Ministério da Saúde, as pessoas negras (pretas e pardas) representam 57% dos casos de violência autoprovocada dentro do grupo de pessoas LGBTQIAPN+. Ainda de acordo com o SINAN, a depressão é mais comum entre pessoas pobres e a falta de tratamento da depressão atinge mais as pessoas negras. Ainda de acordo com o SINAN a deficiência cognitiva que é a dificuldade para aprender, lembrar-se das coisas ou se concentrar afeta 2,6% da população, sendo um tipo de dificuldade funcional. É uma deficiência que também afeta mais as pessoas negras.
A discriminação constante e a percepção de que pertencemos a grupos sociais marginalizados aumenta o sofrimento mental e afeta a autoestima, além de levar a um sentimento de inferioridade.
Acredito que minha experiência de vida, atravessada por todas essas identidades sociais, como deficiência, negritude, ser uma pessoa LGBTQIAPN+, quando somadas à falta de acolhimento por parte do poder público levam a uma sensação de invisibilidade e abandono que prejudicam não só a saúde mental, mas também a convivência em sociedade e o senso de pertencimento a algum grupo com o qual me identifique.

Sergio Gomes é jornalista e escreve para o site da Câmara Paulista de inclusão da Pessoa com Deficiência desde 2022. É pessoa com deficiência, tem esquizofrenia desde os 23 anos. Tem 48 anos de idade.

Voltar para Artigos