Um Judiciário de olhos vendados para as pessoas com deficiência – por Leila Damasceno Ferreira Santos*

Dentre os componentes de uma sociedade democrática, o Poder Judiciário ocupa uma das posições mais importantes, pois lhe foi atribuída a missão de pacificação social, dirimindo conflitos e corrigindo ilegalidades.

O símbolo da Justiça mais conhecido é a deusa grega Themis, representada com uma venda nos olhos, segurando uma balança na mão esquerda e uma espada na direita. A faixa cobrindo-lhe a visão simboliza a imparcialidade de quem não deve diferenciar as partes envolvidas em um litígio, mas proferir decisões justas e prudentes, baseadas na lei.

No entanto, há situações em que deixar de enxergar as diferenças faz a sociedade caminhar para trás, perpetuando desigualdades e impedindo a realização efetiva dos direitos individuais e sociais.

Nesses casos, é preciso que a Justiça lance seu olhar sobre a realidade e atue no sentido de promover as mudanças necessárias, iniciando, quem sabe, dentro do próprio Poder Judiciário. Comecemos por remover a venda dos olhos para encarar os fatos.

De acordo com o artigo 37, inciso VIII da Constituição Federal, combinado com o art. 2º, II, d, da lei 7.853/1989, e com os artigos 5º, § 2 º, da Lei 8.112/90, e 1º, § 1º, do Decreto 9.508/2018, devem ser reservadas às pessoas com deficiência, de 5% a 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos.

Em outubro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou a pesquisa “Diagnóstico das Pessoas com Deficiência no Poder Judiciário”[1], durante o “Webinário sobre Sustentabilidade e Acessibilidade à luz das Resoluções CNJ 400/2021 e 401/2021”. Os dados publicados apontam, em resumo, que:

  1.  No universo de magistrados, servidores e estagiários, apenas 1,74% têm algum tipo de deficiência. Desse total, a maior parcela é de servidores, com 2,04%, enquanto há 0,43% de magistrados e estagiários nessa condição, já excluídos do cálculo os dados de “não informados”, ou seja, em que não foi possível averiguar se o profissional tem ou não algum tipo de deficiência;
  2. Nenhum dos 88 tribunais brasileiros que participaram do estudo, dentro do universo de 90 existentes, cumpre a cota mínima determinada em lei. Os Tribunais que apresentam os maiores índices de inclusão são o Tribunal de Justiça de Roraima, com 4,4%, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com 3,9%, e o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, com 3,8% de trabalhadores pessoas com deficiência em seus quadros;
  3. Nos Tribunais Superiores, os percentuais de trabalhadores pessoas com deficiência são os seguintes[2]: 0,1% no Superior Tribunal Militar; 2,6% no Tribunal Superior do Trabalho; 2,7% no Superior Tribunal de Justiça; e 2,9% no Tribunal Superior Eleitoral. Não foram divulgados os dados do Supremo Tribunal Federal;
  4. Considerando a cota mínima de 5%, existe hoje um déficit de aproximadamente 10,6 mil pessoas com deficiência no judiciário brasileiro para o efetivo cumprimento do regramento constitucional e legal.

De acordo com o Radar SIT[3], esta não é uma situação isolada. O percentual do cumprimento da cota mínima legal pelos entes da Administração Pública é de aproximadamente 12%, o que revela uma situação muito pior do que a encontrada nas empresas privadas, nas empresas públicas e sociedades de economia mista, que cumprem atualmente pouco mais de 50% da cota prevista no art. 93 da Lei 8.213/91.

Conquanto a dicção da lei estabeleça para o setor público apenas a necessidade de reserva de vagas nos processos seletivos, a interpretação necessária e razoável do texto aponta para a sua consequência lógica, qual seja: o efetivo preenchimento dos cargos por pessoas com deficiência.

A cota legal é uma forma de ação afirmativa e deve ser encarada como instrumento de inclusão, e não como mera formalidade. No setor privado, dados do Radar SIT informam que 91% das pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitados que estavam no mercado de trabalho em 2019 foram declarados por empregadores que possuíam obrigação legal de reservar parte de seus cargos para esse grupo populacional, permitindo concluir que sem a política afirmativa da reserva legal de cargos não há mercado de trabalho para as pessoas com deficiência.

No âmbito público, se considerarmos as aposentadorias e vacâncias que ocorrem entre concursos, é fácil notar que a mera destinação nos editais de 5% das vagas às pessoas com deficiência não será capaz de resolver a questão em tempo razoável. Levaria décadas, na melhor das hipóteses, até que se pudesse enxergar uma mudança significativa no panorama de inclusão desse grupo social no Poder Judiciário brasileiro.

No mesmo sentido, se exige dos empregadores que contratam pelo regime da CLT o preenchimento concreto dos seus cargos com trabalhadores pessoas com deficiência, nos percentuais previstos no artigo 93 da Lei 8.213/91, e não apenas a divulgação das vagas ou abertura de seleções.

Por esse motivo, a Caixa Econômica Federal foi condenada, nos autos da Ação Civil Pública 0000121-47.2016.5.10.0007, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, a cumprir o percentual mínimo de 5% e a pagar uma indenização de R$ 1 milhão de reais, a título de danos morais coletivos.

Embora reservasse vagas em seus editais nos percentuais determinados por lei, dados da própria empresa mostravam que, em 2019, o índice de trabalhadores com deficiência em atuação no banco era de apenas 1,42%, menos de 1/3 do exigido pela legislação.

Considerando que, segundo as informações levantadas, nem mesmo a convocação de todos os candidatos pessoas com deficiência do último concurso seria suficiente para cumprir a determinação judicial, a instituição resolveu realizar novo certame, cujo edital foi publicado no Diário Oficial da União em setembro deste ano. Com a iniciativa, foram ofertadas mil vagas exclusivas para pessoas com deficiência.

Neste mês de dezembro, a Caixa divulgou o resultado e informou que mais de 29 mil candidatos realizaram a prova, e que objetivo do banco é efetuar as mil convocações até o final de janeiro de 2022.

Ademais, embora a pesquisa divulgada pelo CNJ tenha indicado que, em 2010, 2,20% da população no Brasil era de pessoas com deficiência, essa informação não condiz com os dados divulgados no Censo Demográfico realizado pelo IBGE[4]. De acordo com esse estudo, no mesmo ano e, especificamente no grupo de 15 a 64 anos, portanto, dentro na faixa etária considerada como idade para trabalhar[5], 7,13% da população apresentava algum tipo de deficiência severa – visual, auditiva, física e mental ou intelectual[6].

Assim, além do desrespeito à lei, o panorama atual do Poder Judiciário demonstra uma falta de representatividade das pessoas com deficiência no ambiente laboral que contribui para o aumento da discriminação.

Retirada a venda dos olhos, é necessário que o Poder Judiciário adote medidas capazes de corrigir a situação apontada, combatendo a discriminação e promovendo a inclusão do enorme contingente de pessoas com deficiência excluídas do mercado de trabalho. Além disso, é preciso evitar a desmoralização dos Tribunais que, embora julguem e condenem empresas que não preenchem a cota legal, não possuem, eles próprios, os percentuais mínimos de trabalhadores pessoas com deficiência em seus quadros.

Sabe-se, ademais, que as medidas adotadas pelo Judiciário servem de parâmetro e exemplo para órgãos e entidades da Administração Pública em geral, inclusive de outros poderes, razão pela qual se espera que o CNJ caminhe rumo à concretização da inclusão das pessoas com deficiência em seus quadros.

Tomando emprestadas as palavras do jurista e Professor Damásio de Jesus, não podemos viver “perante uma Justiça que ouve falar de injustiças, mas, por ser cega, não as vê. Uma Justiça que quer julgar, mas não pode. Essa não é a minha Justiça. Minha Justiça não é cega. É uma lady de olhos abertos, ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, eu a liberto para que possa ver. Por não ser necessário ser cego para fazer justiça, minha Justiça enxerga e, com olhos bons e despertos, é justa, prudente e imparcial. Ela vê a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, os gritos de dor e a desesperança dos necessitados que lhe batem à porta (…). Mas não só vê e conhece. Age. A minha, é uma Justiça que reclama, chora, grita e sofre. Uma Justiça que se emociona. E de seus olhos vertem lágrimas. Não por ser cega, mas pela angústia de não poder ser mais justa”.


*A autora informa que ingressou com Pedido de Providência perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pleiteando a realização de concursos públicos com a reserva de 20% do total de vagas para as pessoas com deficiência, até que seja atingido o mínimo legal (5%) em seus quadros, bem como a adoção de quaisquer outras medidas adicionais ou alternativas que possam promover um aumento significativo e célere no número de pessoas com deficiência no Poder Judiciário, sem prejuízo da recomendação para que outros órgãos e entidades da Administração Pública brasileira sigam as mesmas diretrizes.


[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/pesquisa-pcd-no-pj-1.pdf

[2] Disponível em: https://pcd.cloud.cnj.jus.br/pcd

[3] Disponível em: https://sit.trabalho.gov.br/radar/

[4] A divergência decorreu da não utilização, pelo CNJ, dos padrões propostos pelo Grupo de Washington sobre Estatísticas das Pessoas com Deficiência, fundado na Comissão de Estatística das Nações Unidas para padronizar definições, conceitos e metodologias, de modo a garantir a comparabilidade entre os países, e que consideram pessoas com deficiência severa aquelas que respondem que têm “grande dificuldade” e “não conseguem de modo algum” às perguntas apresentadas no Censo. Para encontrar o percentual da população brasileira com deficiência, o CNJ utilizou dado que considera apenas declarações de “não consegue de modo algum”. Para aferir a quantidade de pessoas com deficiência no Poder Judiciário, o CNJ somente pediu que os servidores declarassem se possuem ou não deficiência, e, em caso afirmativo, indicassem o tipo, conforme planilha disponível em link trazido no próprio diagnóstico.

[5] O IBGE considera pessoas em idade para trabalhar aquelas com mais de 14 anos. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php

[6] Disponível em: https://inclusao.enap.gov.br/wp-content/uploads/2018/05/cartilha-censo-2010-pessoas-com-deficienciareduzido-original-eleitoral.pdf


 

*Leila Damasceno Ferreira Santos é  Auditora-fiscal do Trabalho. Especialista em Direito do Trabalho pela FGV-SP e em Psicologia Positiva, Ciência do Bem-Estar e Autorrealização pela PUC/RS. Atualmente, integra a equipe do Projeto de Inclusão da Pessoa com Deficiência da SRT/SP.

Este artigo foi originalmente publicado no site Jota e reproduzido mediante autorização da autora.

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