Instituições, autoridades e especialistas são contra a nova política nacional de educação que segrega alunos com deficiência

Publicado em: 05/10/2020


Anunciado na última quarta-feira (30), decreto defende a criação de escolas e salas de aula “especializadas” para atender aos alunos com deficiência, em desacordo com a LBI.

Por Fátima El Kadri

O presidente Jair Bolsonaro assinou na semana passada o decreto 10520, que trata da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. O texto traz alterações importantes na política de educação especial (PNEE), instituída em 2008. 

Uma das premissas do decreto aprovado pelo presidente da república é a criação de escolas e classes especializadas, “planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”. 

Esse ponto específico gerou diversas críticas por parte de instituições que atendem a pessoas com deficiência e especialistas em educação inclusiva. Há um consenso de que a nova política é um retrocesso, pois, ao invés de favorecer a inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares, contribui para segregação ainda maior desse público, abrindo espaço para a discriminação e incentivando as instituições de ensino a não se prepararem para receber estudantes com deficiência — o que vai contra o compromisso firmado com a Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e a própria LBI – Lei Brasileira de Inclusão.

O decreto 10.502 gerou uma grande mobilização na sociedade, nas redes sociais e no cenário político, onde deputados de diversos partidos pedem a imediata revogação do decreto. Veja algumas justificativas apresentadas para desqualificar a medida: 

“A nova política de educação  especial representa um retrocesso em 30 anos de luta pela inclusão. Uma sociedade verdadeiramente inclusiva depende da convivência com a diversidade e a escola regular cumpre esse papel”, declarou Luiza Correa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes. 

O Instituto Jô Clemente compartilha dessa mesma visão, destacando que o direito a um  sistema educacional inclusivo “está em consonância plena com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e que a nova política caminha contra inúmeros dispositivos legais da legislação brasileira.

Ela ressalta que o decreto desrespeita tanto a Constituição Federal quanto a Convenção dos Direitos da pessoa com deficiência da ONU. Ambos defendem que os alunos com deficiência sejam matriculados em escola comum. As declarações acima foram dadas ao blog Vencer Limites, do Estadão.

A Deputada Federal Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é a relatora responsável pela Lei Brasileira de Inclusão, publicou em suas redes sociais uma nota onde expressa sua preocupação com a nova política: “Não podemos dar espaço e oportunidade a ações — habituais no passado — de recusa de matrículas e negativa à inclusão escolar de alunos com deficiência, sob a alegação de que seu lugar de ensino são as escolas especiais. Isso é criminoso! 

A deputada também condenou o fato de que o documento da nova PNEE não foi discutido com a sociedade e com o seu público-alvo em nenhum momento. “Nem mesmo o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) teve acesso a ele. Isso viola lema importantíssimo da afirmação histórica do segmento: “Nada sobre nós sem nós”! 

O setor empresarial também se posicionou contrário ao decreto, por meio de Nota Pública, conforme alguns dos trechos a seguir: “Em que pese o nome dado a nova Política, e a utilização de palavras que parecem inclusivas no texto do Decreto, a proposta de um “ensino especial e de uma escola especializada” trazida por referido Decreto, não é verdadeiramente inclusiva, mas sim contrária a dispositivos legais vigentes e na contramão da efetiva inclusão da pessoa com deficiência. A Convenção, proclamada pela Organização das Nações Unidas em 2006 e recepcionada no Brasil com status de emenda constitucional, superou a visão assistencialista quanto à pessoa com deficiência e introduziu uma perspectiva inclusiva, enfatizada e detalhada com a promulgação da LBI. A LBI, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, definiu que acessibilidade deve ser compreendida como a possibilidade de gozo de direitos, pela pessoa com deficiência, pelas perspectivas urbanística, arquitetônica, atitudinal, tecnológica, além de transporte, comunicação e informação. A norma estabelece o dever do Estado em aprimorar o sistema regular de educação para assegurar que se torne inclusivo, garantindo condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem para todos os alunos no mesmo espaço e instituição, por meio do oferecimento de serviços e recursos de acessibilidade que eliminem barreiras e promovam a inclusão plena (art. 28, I e II). É dever das escolas assegurar a adequada formação de todos os professores e funcionários quanto a atitudes e comportamentos inclusivos. Sem prejuízo, as instituições regulares de ensino deverão, sempre que necessário, oferecer apoio escolar e acompanhante especializado para auxiliar a pessoa com deficiência em sua alimentação, higiene, locomoção e outros apoios que, caso a caso, sejam necessários para a efetiva inclusão. É vedado às instituições de ensino se recusarem ou criarem barreiras para a matrícula da pessoa com deficiência e a falta de acessibilidade poderá configurar improbidade administrativa.”

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos (AMPID), destacou que o decreto 10.502 viola a proteção aos direitos humanos presentes na Constituição da República e na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; fere o compromisso internacional assumido pelo Brasil ao assinar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que dispõe sobre direitos humanos; violenta o sistema jurídico brasileiro no qual a referida Convenção está incorporada com o status de norma constitucional que obriga e estabelece o sistema de ensino inclusivo em todos os níveis”.

A Rede-In (A ​Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) também publicou uma nota de repúdio, afirmando que “a “nova” política regride para um paradigma antigo e já ultrapassado de segregação de estudantes em classes e escolas especiais, sendo flagrantemente inconstitucional. A inclusão é o único caminho possível para uma educação de qualidade, capaz de garantir a equidade nas condições de aprendizagem e de fazer cessar a discriminação em relação a estudantes com deficiência”.

Em seu Instagram, a ativista Adriana Godoy lembrou que “a luta pela inclusão é de décadas, porém uma conquista recente e que exige modificação profunda na sociedade e nos equipamentos que usamos. Urgente aprender, na prática, que ser “deficiente” não faz alguém incapaz”, diz ela.

Segundo a Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades (Coordigualdade), órgão ligado ao MPT, um sistema de educação inclusiva é essencial para prevenir a discriminação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, ajudando a derrubar argumentos contra a sua empregabilidade — como, por exemplo, a falta de qualificação profissional. “A inclusão no sistema de ensino é o único caminho possível para uma educação de qualidade, garantindo a igualdade de condições de ensino-aprendizagem e de trabalho, proibindo a discriminação de  estudantes com deficiência”.

Como um órgão que atua exclusivamente para promover a inclusão da pessoa com deficiência em todas as esferas da sociedade, a Câmara Paulista de Inclusão da Pessoa com Deficiência se une a todas as entidades, pais, professores, e aos milhões de estudantes com deficiência para pedir a derrubada do decreto 10.502, que institui a nova Política Nacional de Educação Especial.

“Consideramos que a convivência, nas escolas, das crianças e jovens com deficiência é um direito constitucional e fundamental para impedir o surgimento do preconceito e da discriminação”, afirma o coordenador da Câmara Paulista para Inclusão, José Carlos do Carmo.

A Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), da Faculdade de Educação da Unicamp (SP), Maria Teresa Eglér Mantoan, publicou uma carta-manifesto  posicionando-se contra o decreto da nova PNEE, ressaltando que “a ‘nova’ política de educação especial de nova só tem a data e o nome, pois o que defende se configura como mera reforma, trazendo de volta práticas outrora fracassadas e inconstitucionais. Por isso, manifestamos nosso mais profundo comprometimento no sentido de repelir as modificações impostas à PNEEPEI/2008”

Posição do governo federal

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o Ministério da Educação, responsáveis pela elaboração do decreto, alegam que “a meta é ampliar o atendimento educacional especializado no país, com foco no desenvolvimento de potencialidades, de acordo com interesses e singularidades dos estudantes. Devem ser beneficiados mais de 1,3 milhão de educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. 

Para a primeira-dama e presidente do Conselho do Programa Pátria Voluntária, Michelle Bolsonaro, “O PNEE fortalece o direito de escolha da família. Temos o dever de oferecer aos cidadãos a opção de escolarização para que possam escolher entre as escolas regulares, especializadas ou bilíngues para surdos. Sonho, trabalho e luto por um Brasil sem barreiras comunicacionais, em que todos sejam valorizados e respeitados”, disse ela no anúncio da nova política.

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