Companhia aérea constrange e retém ativista durante horas por despreparo de funcionários

Publicado em: 17/09/2025


Descaso, retenção da cadeira de rodas, envolvimento da Polícia Federal – funcionários despreparados e com pouca empatia constrangem e impõem horas de desconforto e mal estar para ativista em inclusão e acessibilidade.

Por Sergio Gomes para o site da Câmara Paulista de Inclusão da Pessoa com Deficiência

            No dia 27 de agosto, Luciana Trindade, ativista, consultora de diversidade e membro do Conselho Consultivo da Câmara Paulista de Inclusão da Pessoa com Deficiência, foi vítima de um caso de capacitismo e violência contra pessoa com deficiência ao ficar retida, junto com seu esposo, sem explicações, por mais de duas horas em uma aeronave da companhia LATAM, no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Luciana explicou melhor todos os fatos em entrevista ao site da Câmara Paulista de Inclusão.

Antes de ler a entrevista que se segue, conheça o que diz a legislação brasileira sobre o embarque de pessoas com deficiência em aeronaves:

No Brasil, o embarque preferencial para pessoas com deficiência é garantido pela legislação, principalmente pela Resolução nº 280/2013 da Anac, que assegura o atendimento prioritário e a assistência especial desde o check-in até o desembarque. As companhias aéreas devem prestar assistência sem custos adicionais, e a lei também prevê o transporte gratuito de equipamentos de assistência, como cadeiras de rodas. O passageiro deve informar a necessidade de assistência com antecedência, geralmente com 72 horas antes do voo.

Direitos e Assistência

. Atendimento Prioritário: Pessoas com deficiência têm direito a embarcar preferencialmente, assim como receber assistência especial em todas as fases da viagem.
. Assistência Especial: As companhias aéreas devem oferecer atendimento prioritário e assistência para o acesso às instalações aeroportuárias, aeronaves e veículos, segundo a Resolução nº 280/2013 da Anac.
. Equipamentos de Assistência: A Resolução nº 280/2013 também garante que equipamentos como cadeiras de rodas, muletas e próteses podem ser transportados gratuitamente.
. Custo para Acompanhante: Se a empresa aérea exigir um acompanhante, o assento deste deve custar no máximo 20% do valor da passagem do passageiro com deficiência.
. Obrigações da Companhia Aérea: As companhias aéreas devem treinar seus funcionários para garantir que a assistência seja oferecida.

Como Acionar o Direito

1. Informe a Companhia Aérea: Ao comprar a passagem, informe a necessidade de assistência especial.
2. Apresente Documentos: Você pode precisar apresentar documentos que comprovem a deficiência.
3. Verifique o Prazo: Normalmente, é necessário informar a necessidade de assistência pelo menos 72 horas antes do voo.

Quem tem direito à assistência

• Pessoas com deficiência (PCD)
• Pessoas com mobilidade reduzida
• Idosos (a partir de 60 anos)
• Gestantes e lactantes
• Pessoas acompanhadas de criança de colo
• Qualquer pessoa que tenha limitação na sua autonomia como passageiro

foto de Luciana Trindade. Ela tem a pele branca, cabelo marrom longo e liso, olhos castanhos, usa camisa branca, calça preta e está sentada na cadeira de rodas. Está sorrindo.
Luciana Trindade foi candidata a vereadora para o município de São Paulo, em 2024.

Câmara Paulista de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Então, Luciana, em que momento os funcionários pediram para você desligar o aparelho de ventilação mecânica? E de que forma eles fizeram isso?

Luciana Trindade – Para contextualizar: meu voo estava marcado para as 14h50. Sempre chego ao aeroporto com cerca de três horas de antecedência, pois o check-in é mais demorado devido à cadeira de rodas e à necessidade de fornecer informações sobre o equipamento. Quando entrei na aeronave em Brasília, eram 14h10. Fui a primeira a embarcar e estava sentada na fileira 10, na poltrona do meio, enquanto meu esposo estava sentado no corredor. A poltrona da janela, por enquanto, estava vazia.

Quando o embarque começou, chegou um rapaz muito grande e alto. Ele estava sentado na janela, mas o espaço na fileira 10 é bem estreito, e o rapaz teria que me “pular”. Então, eu disse: “Olha, eu não ando”. E o André (meu esposo) complementou: “Olha, ela não anda”. O passageiro da janela perguntou: “Então, você pode trocar comigo?”. Ele pediu para o André sentar na janela, e ele sentaria no corredor para evitar o desconforto. Tudo bem, o André me “pulou”, sentou na janela, e o embarque foi finalizado.

Eu já havia colocado meu aparelho [ResMed Astral 150*, um ventilador mecânico leve e portátil para suporte respiratório]. O comandante da aeronave anunciou: “Estamos em processo de decolagem”. O avião começou a taxiar em direção à pista de decolagem. Nesse momento, com todos sentados e eu já com meu aparelho, dois comissários se aproximaram e me abordaram: “A senhora está usando um POC [Concentrador de Oxigênio Portátil], não pode. A senhora precisa retirar o equipamento e só colocá-lo quando já estivermos voando”.

Meu esposo perguntou: “Não, mas por quê? O equipamento dela não é um POC, é um Astral, um ventilador mecânico que está habilitado na lista de equipamentos que a LATAM permite serem utilizados durante o voo”. Ela respondeu: “Estou dizendo que não pode. Inclusive, sua esposa está sentada em uma poltrona onde não deveria, pois, em uma situação de risco, ela seria uma barreira para todos os passageiros”.

O André argumentou: “Olha, para podermos trocar minha esposa de lugar, o avião tem que parar. Como vou pegá-la no colo e trocá-la de poltrona se o avião está em movimento? Peça ao comandante para fazer uma parada para que possamos fazer a troca”. Ela então disse: “Não, então espere, porque vou lá na frente perguntar e volto”. Ela foi e voltou rapidamente.

Então, ela disse: “Vamos fazer o seguinte”. Tirou o rapaz que estava na poltrona do corredor, colocou-o na fileira 21 e pediu para o André retornar para a poltrona do corredor. Tudo isso com o avião em movimento. Eles não pararam. A qualquer momento, iríamos decolar, e estaríamos nesse processo. O André sentou na poltrona do corredor. Eu não tirei o aparelho, pois não tinha condições. A viagem seguiu normalmente, e durante o voo continuei usando o aparelho sem problema algum.

Quando chegamos em Guarulhos, aqui em São Paulo, às 16h30, foi quando os problemas começaram, e não tínhamos ideia do que estava acontecendo.

CPIPD-A LATAM alegou ‘conduta inadequada’, certo?

Luciana Trindade – Sim, essa nota da Latam surgiu quando meu esposo, em Brasília, questionou a comissária: “Como vocês querem que eu faça a troca dela se o avião está em movimento?”. Para eles, esse questionamento foi interpretado como indisciplina, como se a pessoa não quisesse atender ao comando da comissária. No entanto, não tínhamos ideia de que não podíamos perguntar ou falar nada, que tínhamos que dizer “sim” para tudo. Além disso, eles estavam afirmando que meu equipamento e eu éramos um risco para o voo. Ela me expôs ao dizer: “Luciana, você é uma barreira para os outros passageiros. O seu equipamento é um risco”. O passageiro da frente se virou para me olhar, e os outros passageiros também. Ela criou uma situação de constrangimento desnecessária.

CPIPD – Entendi. E foi essa fala dela que fez você se sentir exposta como uma pessoa perigosa?

Luciana Trindade – Sim, ela me constrangeu. Quando ela afirma que meu equipamento é um risco para o voo e as outras pessoas ao redor não sabem o que é, todos ficam… Você imagina a pessoa que vai viajar com alguém que representa um risco para o voo? Qual é esse risco? Ela me expôs porque os outros passageiros não estavam entendendo o que estava acontecendo. E nós até tentamos explicar: “Olha, este não é um equipamento que utiliza oxigênio. Ele capta o ar ambiente e o injeta com força nos pulmões dela. Ele possui todos os certificados e as habilitações necessárias para ser usado com segurança durante o voo”. Eu costumo viajar bastante, vou muito a Brasília e nunca tive problemas com a LATAM. Inclusive, opto por voar pela LATAM porque sei que, no site da companhia, o equipamento [de que Luciana faz uso] está habilitado e não terei nenhum problema. Contudo, além do desconhecimento dos funcionários, faltou um pouco de sensibilidade e treinamento na abordagem, pois eles me expuseram.

foto do equipamento Astral 150. O equipamento tem um formato retangular, de metal, com um visor na parte de cima.

CPIPD – Como que é o procedimento para a pessoa que é cadeirante embarcar no avião?

Luciana Trindade – Para uma pessoa sem deficiência, o check-in pode ser feito pelo celular. Se houver bagagem para despachar, basta emitir a etiqueta e entregá-la. No entanto, para mim, Luciana, ou qualquer outra pessoa com deficiência que utiliza cadeira de rodas, é necessário chegar ao aeroporto com duas a três horas de antecedência ao horário do voo. Isso se deve a um procedimento no balcão de check-in, onde um documento é preenchido com informações sobre a cadeira, como peso (no meu caso, 60 quilos) e uso de bateria. Essa antecedência é crucial para fornecer todos esses dados.

Após o check-in, dirijo-me ao portão de embarque com o documento em mãos. Esse documento é para informar ao comandante do avião sobre a presença da cadeira de rodas e o uso de bateria. No portão de embarque, solicito o Ambulift* para que minha cadeira seja levada ao porão.

Realizamos todos esses procedimentos: chegamos com antecedência, fornecemos as informações e, no check-in, detalhei todos os meus equipamentos. Um ponto importante a destacar é que fui a primeira a embarcar. Atualmente, as companhias aéreas não oferecem mais as poltronas da frente gratuitamente para pessoas com deficiência; é preciso pagar mais caro pela passagem para ter acesso a elas. Caso contrário, somos direcionados para o fundo do avião, como aconteceu comigo.

Outra informação relevante é: se eu não podia sentar na poltrona do meio, por que me colocaram lá? Fizemos todos os procedimentos, sentamos na fileira 10, e o embarque de mais de 200 pessoas ocorreu normalmente. Eu estava na poltrona do meio porque os comissários me viram. A confusão e a situação constrangedora só começaram após o início do processo de decolagem.

Para finalizar, é preciso chegar com duas ou três horas de antecedência, fornecer todas as informações e, no portão de embarque, procurar os operadores para solicitar o Ambulift e outras assistências necessárias para a cadeira.

foto de um avisão no pátio do aeroporto, com o equipamento Ambulift acoplado à porta da aeronave.

CPIPD – Luciana, como que essa experiência te impactou?

Naquele dia, eu passei muito mal. Primeiro, porque entrei na aeronave às 14h, e já eram quase 7 da noite. Eu não tinha tomado água nem conseguido ir ao banheiro. O avião estava muito, muito frio, e minha pressão subiu. Senti-me muito mal. Além do constrangimento, houve um sofrimento físico que não foi levado em consideração em momento algum. Isso porque não fomos informados por nenhum comissário sobre o que estava acontecendo.

Em segundo lugar, se o problema era com o André, por que me mantiveram dentro da aeronave por todo esse tempo? Eu poderia ter desembarcado e esperado lá fora. No entanto, só fomos informados de que estavam segurando minha cadeira quando a Polícia Federal chegou. Isso ocorreu porque o André já havia ligado para a Polícia Federal pedindo ajuda, explicando: “Olha, estamos aqui dentro da aeronave há mais de duas horas e não sabemos o que está acontecendo”. A pessoa que atendeu na delegacia da Polícia Federal do aeroporto disse: “Olha, infelizmente não podemos fazer nada, porque é um procedimento da operadora, no caso, da LATAM”.

Quando vimos a Polícia Federal na porta, o André pensou: “Que bom que vocês vieram, porque chamamos”. O policial, porém, respondeu: “Não, eu não vim porque vocês chamaram. Eu vim porque o comandante acionou a Polícia Federal para retirar vocês de dentro do avião”. O André perguntou: “Mas retirar a gente por quê?”. O policial explicou: “Olha, vamos ter que ir para a delegacia para conversar”. André então disse: “Mas eu não posso, não tenho como sair, porque minha esposa é cadeirante”. O policial perguntou: “Cadê a cadeira dela?”. André respondeu que não sabia.

Um dos comissários da tripulação interveio e disse: “Olha, não liberamos a cadeira dela porque o comandante não autorizou. Disse que era para entregar a cadeira somente quando a polícia chegasse”. Então, eu estava realmente vivendo uma situação de cárcere, pois o fato de não me entregarem a cadeira me tirava, de fato, o direito de ir e vir. Era como se, caso me dessem a cadeira, eu fosse fugir. Isso não tem cabimento, ainda mais porque, se a situação era com o André, por que me mantiveram presa lá?

Bem, fomos para a delegacia e prestamos depoimento ao delegado. Nesse momento, eu já estava passando muito mal. O delegado chamou a equipe médica do aeroporto para fazer o atendimento. Minha pressão estava alta, e tomei medicação, bebi água e fiquei um tempo lá usando um aparelho para ajudar na oxigenação. Prestamos o depoimento, e o delegado não viu nenhum indício de crime e nos liberou. Foi isso. Saímos do aeroporto quase dez horas da noite, sem nenhuma assistência da LATAM. Ninguém da LATAM nos procurou para perguntar: “Olha, vocês estão bem? Precisam de algo?”. Não houve essa assistência em momento algum.

CPIPD – Luciana, você já fez uma reclamação nos canais oficias da LATAM?

A gente fez a reclamação no mesmo dia, não houve nenhuma procura de fato da LATAM sobre algum tipo de retratação, não houve. Outra coisa que a gente também cobrou foi um esclarecimento dos órgãos responsáveis pela aviação no Brasil, também não tivemos retorno. O Ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa, entrou em contato comigo através da assessoria dele e ficaram de dar um retorno para a gente, mas até hoje [8 de setembro] não recebemos esse retorno. Está tudo muito vago, procuramos o ministro para poder dialogar sobre isso, mas não tivemos retorno.

CPIPD – E você pretende processar a LATAM?

Ainda não conversamos oficialmente, mas de fato buscaremos uma reparação, pois é nosso direito. Contudo, antes de qualquer reparação financeira, considero essencial dialogar com o Governo para que situações como essa não se repitam. Não é a primeira vez que a Polícia Federal me retira de uma aeronave por estar utilizando o mesmo equipamento.

Percebemos que existe uma legislação, a Resolução 280 da ANAC, que regulamenta o embarque e desembarque de pessoas com deficiência no transporte aéreo, abrangendo não apenas pessoas com deficiência, mas também idosos e indivíduos com algum tipo de necessidade especial. No entanto, essa resolução, datada de 2013, precisa ser atualizada. Ela passou por uma consulta pública desde o início do ano, e o que se observou no texto proposto é um retrocesso nos direitos das pessoas com deficiência.

Ainda não temos um documento final e não sabemos como ficou a versão definitiva, mas, a princípio, o texto colocado em consulta pública estabelecia, por exemplo, que se um cadeirante, um atleta ou para-atleta com autonomia (que consegue sair da cadeira e fazer transferências) chegasse ao embarque e solicitasse apoio (como “estou sentado na cadeira 10, preciso de apoio para ir até lá”) e não estivesse acompanhado, ele não poderia embarcar. Isso, mesmo que essa pessoa tenha autonomia, independência e viaje sozinha há muito tempo. Nessa situação, os operadores poderiam negar o apoio e, inclusive, o embarque. Similarmente, um surdo-cego ou uma pessoa surda que embarcasse sozinha também não seria mais permitida. Para autistas de nível 1, 2 ou 3, se por alguma razão dentro da aeronave a pessoa desregulasse e o comissário entendesse que ela representava um risco para o voo, seria retirada compulsoriamente.

Portanto, o texto que foi submetido à consulta pública, na nossa percepção, exclui totalmente o passageiro com deficiência da aviação brasileira e protege muito mais as empresas do que os direitos humanos ou os direitos das pessoas com deficiência.

CPIPD – Luciana, tem mais alguma coisa que você queira colocar?

Eu acho importante falar que essas situações de violência, de capacitismo, discriminação de pessoas com deficiência na aviação brasileira. É algo que vem acontecendo constantemente. São mais de 500 casos de 2024 para cá de situações de pessoas com deficiência que sofreram algum tipo de discriminação, tanto em aeroportos quanto em companhias aéreas, precisamos falar sobre isso, não é possível continuar assim. Inclusive, levando em consideração que, recentemente, o Ministério de Portos e Aeroportos aprovou uma lei que protege os direitos dos pets, dos animais, embarque e desembarque de animais. Só que a discussão sobre a pauta da pessoa com deficiência na aviação brasileira não é discutida. E não é a primeira vez que isso acontece comigo, que acontece com outras pessoas com deficiência e a gente não vê o governo brasileiro pautando isso ou falando sobre isso.

* O ResMed Astral 150 é um ventilador mecânico portátil e versátil que proporciona suporte ventilatório para adultos e crianças a partir dos 5kg, oferecendo ventilação invasiva e não invasiva tanto em hospitais quanto em casa.

Nesse link pode-se consultar a lista de equipamentos permitidos pela empresa LATAM na cabine em seus voos, no caso do aparelho utilizado por Luciana pode-se verificar na sessão equipamentos médicos de assistência respiratória dentro do link.

** Ambulift – Um ambulift é um veículo com elevador utilizado em aeroportos para o embarque e desembarque de passageiros com mobilidade reduzida, como pessoas com deficiência ou idosos. O veículo tem uma cabine hidráulica que se eleva até a porta do avião, permitindo que os passageiros entrem e saiam da aeronave sem a necessidade de escadas

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