Pais e alunos de vários Estados denunciam, em carta, falta de acessibilidade adequada para pessoas cegas nas provas do Enem

Publicado em: 22/11/2018


“As famílias investem na qualidade da educação dos filhos e na hora da prova essas crianças têm de usar ferramentas que não utilizam no dia a dia?”

Após comentário recebido na fanpage da Câmara Paulista Para Inclusão da Pessoa com Deficiência, via Portal da Deficiência Visual, a reportagem da Câmara identificou evidências de que o Exame Nacional do Ensino Médio deixou não garantiu a acessibilidade para a inclusão de fato e direito da pessoa cega. O uso do computador com as ferramentas acessíveis foi descartado, e as limitações do ledor e da máquina de escrever em braile não garantiram o desempenho em condições de igualdade.

Rosangela Gera, Jucimeire Marques de Oliveira e Francisco José de Lima são pais de estudantes cegos. Eles relatam que o Enem não respeitou as necessidades dos candidatos com deficiência em suas individualidades. Ao proibir o uso de tecnologia assistiva compatível à realidade atual e disponibilizar ferramentas ultrapassadas, além de não acompanhar a evolução dos métodos de educação inclusiva, caminha na contramão da história.

Laura, 16 anos, realizou a primeira prova com dificuldade, Ana Carolina, 17, tem a esperança de contar com os recursos necessários no ano que vem e Mateus, 22 presta a prova pela terceira vez. As adolescentes cursam o primeiro ano, enquanto o Mateus já concluiu o Ensino Médio. Como qualquer estudante, eles sabem que o bom desempenho no Enem representa o acesso à universidade pública de qualidade e ao mercado formal de trabalho.

A médica Rosangela Gera, mãe de Laura, que realizou o exame em Colatina, ES, reclamou da incoerência da propaganda feita pelo Enem quanto ao seu caráter inclusivo e, principalmente, da lentidão em utilizar tecnologias apropriadas. “Estou indignada”, desabafou.

Ao relatar a experiência para a mãe, após a prova, Laura listou as dificuldades enfrentadas. Entre elas: compreender o ledor (pessoa que leu a prova, transcreveu a redação e assinalou as respostas) em seu tom de voz, agilidade, ritmo e capacidade de leitura. Também, a falta de independência, pela obrigatoriedade de ter de se submeter à ajuda externa, de uma pessoa desconhecida, o que gera ansiedade e insegurança ainda maior. “Afinal, o processo não é registrado e depende do que o candidato diz e o ledor entende”.

“Há vinte anos temos computadores e programas específicos que garantem autonomia à pessoa cega, ferramentas utilizadas em instituições como Fundação Dorina Nowill para Cegos e Instituto Benjamin Constant”, enfatiza a médica lembrando que os estudantes, hoje, têm a vivência tecnológica inclusiva em sala de aula. “Não entendo como ninguém denunciou até hoje a ausência das ferramentas adequadas no Enem. Teria sido preciso uma mãe apelar para a sociedade civil?”, questiona.

A advogada Jucimeire Marques de Oliveira, moradora de Cuiabá, Mato Grosso, preferiu não inscrever a filha ao exame após ler o edital do Enem. Conta que não teve resposta do Inep (Instituto Nacional de Estudos de Pesquisa), responsável pela prova ao seu questionamento quanto ao uso do computador e consultou o Ministério Público Federal. O próximo passo é entrar com uma ação civil pública, na tentativa de garantir o direito de todos os candidatos com deficiência a prestarem um exame inclusivo de verdade. Se for preciso, entrará com um Mandado de Segurança individual que permita à filha usar um computador para durante a prova do Enem 2019.

Como boa advogada, com ampla vivência em educação, ela vai esperar o edital do próximo ano para ter bases concretas para direcionar a ação. Enquanto isso está contatado família e candidatos com deficiência, como um surdocego que enfrenta dificuldades ainda maiores e, por isso, sente-se frustrado com o próprio desempenho. “O governo exige das escolas uma acessibilidade que ele não dá conta de fazer”, enfatiza.

“O Enem está disponibilizando equipamentos do século passado para os estudantes. A minha filha não usa a máquina braile desde o final da segunda etapa do ensino médio”, diz a moradora de Cuiabá, no Mato Grosso.  Ela fez de tudo para que a filha se desenvolvesse, investiu na máquina braile, no reglete, na régua braile, mas hoje em dia o computador, com o sistema NVDA (leitura de tela), domina a rotina da estudante. O leitor é de uso aberto, disponibilizado gratuitamente pela internet, completa a advogada que atua na área da educação.

Além de cego, Mateus é autista, mas mesmo assim concluiu o Ensino Médico aos 17 anos. A adaptação seguiu os passos do pai, professor da Universidade Federal de Pernambuco, que apesar dos inúmeros títulos, no Brasil e Exterior, prefere ser chamado apenas de professor Francisco. Os dois são cegos de nascença, apesar de não haver relação genérica.

“Mateus nos adotou quando tinha pouco mais de dois anos, em 97. Conheci Mateus em 1997, quando fomos convidados para visitar uma casa de adoção, em Ribeirão Preto. Foi amor à primeira vista. Conhecemo-nos em dezembro e em janeiro o levamos para um período de férias, que se estendeu para a vida toda. Ele é um batalhador para a questão da inclusão”, relata o professor.

O glaucoma congênito causou a falta de visão do pai, que nasceu em São Paulo, estudou se graduou na Universidade de São Paulo e migrou para Recife. A cegueira não o impediu de, ao longo de 18 anos, formar turmas de universitários no ensino superior e romper fronteiras ao estudar, se formar, tornar-se mestre, doutor, pesquisador e referência no ensino. Este ano, ele se matriculou no Enem e submeteu-se ao exame para tentar entender o processo e suas falhas. O filho concorre para o curso de informática e pai para Jornalismo.

Mateus teve um bom desempenho no primeiro Enem que prestou,o que permitiria matricular-se em alguns cursos da Universidade Federal de Pernambuco, mas não o suficiente para o curso de Canto, que ele pleiteava na época. No segundo não foi tão bem avaliado e no ano passado não prestou o exame, pois estava vivendo com a família fora do Brasil, acompanhando o pai em mais uma de suas especializações.

“O Enem tem uma série de problemas técnicos, falhas que estão sendo  desconsideradas e que geram grande desvantagem aos candidatos com deficiência”, afirmou Francisco. Assim como aconteceu com Laura, ele enfrentou as dificuldades com o ledor e transcritor, que indiretamente aumentaram a complexidade para realização da prova.  Por exemplo: a dificuldade de diferenciar a pronúncia das palavras Word e World.

“Eu tive dois profissionais graduados à minha disposição, mas que não foram capazes de suprir as minhas necessidades e garantir uma prova isenta de ruídos e problemas de competência, comunicação e interpretação”, completa afirmando que seria muito mais simples gravar as descrições e permitir o uso do computador. Segundo ele, o simples fato de o ledor e transcritor serem pessoas, com capacidades, vivência e até mesmo tamanho de letras e tempo de escrita diferente, implicam em condições desiguais para candidatos diferentes.

O acadêmico pontua que apenas o tamanho da letra braile, que ocupa um espaço três vezes maior se comparado a escrita a tinta, prejudica sobremaneira o candidato em relação ao espaço limitado para a redação, além do tempo gasto pelo ledor para transcrever a redação. Para candidatos com deficiências intelectuais, barreiras como excesso de figuras, enunciados longos, falta de coerências entre perguntas e resposta e o estilo “pegadinha” de avaliação são barreiras do conteúdo não acessível.

Os três lembram que apagar impressões feitas em braile, que tem de ser feita a unha e que sistema deixa relevos, pode levar a erros. Afinal, uma marca residual pode significar um ponto. A advogada questiona: por que não provas específicas, apropriadas para quem o candidato com deficiência?

“As famílias investem na qualidade da educação dos filhos e na hora da prova essas crianças têm de usar ferramentas que não utilizam no dia a dia?” Questionou a médica. “O Enem, coloca o candidato em desigualdade por questões que não tem nada a ver com a deficiência dela”, argumenta o professor.

“Como toda mãe, eu luto pelos direitos e encaminho a minha filha para ser uma pessoa independente. A minha educação é pela autonomia, pela igualdade de direitos. Por isso, a minha filha sabe o valor que tem e nunca permitirá ser discriminada”, diz a Jucimeire.

Desde pequenos avançando na inclusão de fato e direito

Cega total, Ana Carolina nasceu com retinopatia da prematuridade, em consequência do parto prematuro aos sete meses, pesando apenas 1 kg. Na luta pela vida permaneceu dois meses na Unidade de Terapia Intensiva.

Laura nasceu sem os globos oculares (anoftalmia bilateral) e utiliza próteses. Com o estímulo da mãe, desde pequena desenvolveu a autonomia necessária, sobretudo no desempenho escolar. Uma trajetória que não foi fácil, não pelo perfil da aula, mas das instituições de ensino.

O autismo potencializa as dificuldades da cegueira de Mateus, que teve retinopatia da prematuridade, mas aprendeu a conviver com a dupla deficiência. Inteligente e independente, ele encontrou nas falhas do Enem um obstáculo que não deveria ter de enfrentar.

Os pais estimularam os filhos e investem nos recursos, que nem sempre foram acessíveis, economicamente falando. Ao longo dos anos, quando alguma autoridade escolar argumentava sobre a dificuldade que a filha teria, Rosangela questionava se seria a similar a dos colegas. Ela sabe que a filha tem competência para se adaptar, desde que o professor/instituição/governo façam a parte deles.

“Os códigos em braile já foram fundamentais para a alfabetização da pessoa cega, mas hoje a tecnologia inclusiva ocupou este espaço e o Enem ao pode ignorar isso. Até mesmo os smartphones garantem a audiodescrição no alcance das mãos”, pondera a Dra Rosangela

“Laura saiu arrasada da primeira fase da prova do Enem, ciente de que não prestou a prova em condições de igualdade. Foi uma violência contra a minha filha”, reclama lembrando que “é fácil a sociedade cobrar competência”. Segundo ela, a deficiência biológica da filha não foi a sua maior luta, mas garantir a sua inserção escolar nos últimos 16 anos. “A deficiência está no ambiente, e não na pessoa”, enfatiza.

“O Brasil, em atitudes e ações, mostra que não tem interesse na educação de todos e para todos”, contextualiza o professor. O que, segundo ele, é proposital: os editais educacionais limitam as oportunidades, os vestibulares são excludentes, o sistema de cursinhos é inviável economicamente para os mais pobres. “Os professores, no Brasil, têm uma incapacidade técnica. Não são formados para formar, não sabem o que é adaptação, acessibilidade pedagógica e o que estão fazendo com a deficiência, que é múltipla”, provoca.

Tecnologia garantiria maior segurança

“A prova em Braile é cara, grande, pesada e obsoleta. Parece uma Bíblia”, compara a doutora Rosangela, ressaltando o acúmulo de resíduos gerados após o exame. Também, que para confeccioná-la muitas pessoas estão envolvidas, da formatação, impressão à correção, o que, segundo ela, aumenta o risco de fraudes.

“Não seria mais fácil fazer uma prova digital? Para isso, disponibilizar computadores com a instalação do CD, entregue num envelope lacrado e instalado no momento do exame, sugere. “A redação seria pensada sem ruídos, garantindo o desempenho real”, completa.

Laura, Mateus e Ana Carolina dominam todas as tecnologias disponíveis para uma pessoa cega e os seus pais não pedem muito, apenas igualdade de condições, através de uma prova adaptada, de fato. O professor Francisco exemplifica:

Como uma pessoa que enxerga descreveria um grilo? O inseto ou o personagem da história infantil Pinóquio. Quantas pernas ele tem? Pergunta instigando a pessoa que enxerga a pensar sobre a dificuldade para uma pessoa cega concorrer numa prova cheia de figuras, como o Enem. “Imagine analisar um mapa, então?”. Para amenizar esta dificuldade, ele está trabalhando num projeto de acessibilidade inédito, e prometeu divulgar em primeira mão para os leitores da Câmara Paulista de Inclusão para o Pessoa com Deficiência.

Para o professor, o Enem está descumprindo duas leis, que poderiam nortear ações na Justiça: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor. “O Enem vende algo que não entrega: a prova acessível. O candidato com deficiência paga por um serviço e espera em troca um produto condizentete. O exame é uma afronta à dignidade humana”.

Ele sugere uma leitura atenta ao Decreto 3956 /2001, que regulamentou a discriminação por deficiência, na Convenção Interamericana. Resumindo, o texto afirma que constitui discriminação toda a ação que resulte em limitação e dificultação ou incapacidade de alguém exercer um dever ou de usufruir de um direito. “Os candidatos com deficiência estão sendo discriminados pelo Enem”, finaliza.

Leia a íntegra da carta de Rosangela Gera

Carta de uma mãe ao Inep e ao Ministério da Educação

Enquanto escrevo esse documento, minha filha de 16 anos, estudante com deficiência visual, realiza a prova do ENEM 2018.

Na noite anterior, o Ministro da educação comemora 20 anos de realização da prova pelo Inep e ressalta as condições de acessibilidade da mesma. E eu

indignada assisto seu pronunciamento enquanto vejo minha filha colocar na sua mochila não o seu computador para realizar a prova, mas pasmem!, uma máquina de escrever em braille!

Em pleno século 21, para o ENEM 2018, aos alunos cegos é permitido: um ledor para as provas e um transcritor de suas respostas. A prova de redação? Redigirão em braile e depois irão ditá-las ao transcritor.

O que será que fariam os estudantes que enxergam e suas famílias, se no edital do Inep para o ENEM fossem proibidos de usar lápis, canetas, e a leitura em tinta?, Se de repente lhe fossem negados os recursos com os quais se habituaram durante toda a vida escolar?

Será que haveria uma grande repercussão na mídia? Será que manifestações na porta das escolas impediriam a entrada dos alunos que aceitassem essa situação? Provavelmente sim!

E o que podem fazer estudantes com deficiência visual e suas famílias diante da recusa do Inep em aceitar que utilizem o computador com o qual estudam, assistem aulas e realizam provas em seu dia a dia escolar?

O que fazer diante dessa flagrante discriminação com esse grupo de estudantes?

Discriminação sim porque o termo por definição representa toda restrição com efeito prejudicial e a Lei é muito específica, discriminar significa “… a recusa de adaptações e de fornecimento de tecnologias assistivas.” E é claro que o prejuízo é retirar desses alunos a sua capacidade de concorrer em condições de igualdade.

Experimentem responder provas cansativas, com toda ansiedade envolvida no contexto, com alguém lendo essas questões, são sotaques, pronúncias, entonação, tudo isso precisa ser assimilado de imediato, existe um relacionamento que precisa ser estabelecido ali na hora com um desconhecido, uma confiança que precisa ser conquistada.

Acharam complicado, não? E a A prova de redação? terá que ser ditada. E se o transcritor escrever uma palavra errada? Sucessão? Dois S? Ç? Obstáculo? o mudo?Bom, “a prova será ditada!!! ” isto está escrito no cartão de identificação!

Quer dizer que o transcritor sequer terá domínio da escrita braile!?!?

Tudo isso faz parte do universo de preocupação do estudante cego, o que por si só já o coloca em desvantagem, pois enquanto isso, os seus pares estão preocupados apenas em estudar matemática, física, química, ou com o tema da redação.

Então é por esse direito, vejam bem, direito e não privilégio, que em nome desses estudantes e de suas famílias que peço a vocês, cidadãos de bem desse país, que realmente acreditam que só vamos melhorar como nação quando aprendermos que lei é para ser cumprida e não escrita e aprovada apenas. É para voces que peço, divulguem, tornem esse fato de conhecimento do maior número possível de pessoas para que promotores e juízes, façam a intervenção necessária e exijam que o Inep se ajuste a Lei e evitem que estudantes com deficiência visual precisem retroceder em vez de avançar em suas conquistas e principalmente para que esses alunos possam de fato estar na competição em condições de igualdade.

Lei Brasileira de Inclusão: ” Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.”

Rosangela Gera, médica, Colatina ES

Nota da redação 1: a reportagem solicitou uma posição do Inep, através da sua assessoria de imprensa, no dia sete de novembro, mas após contato por email inicial por email, não nos respondeu até a publicação desta matéria.

Nota da Redação 2: o presidente do Portal da Deficiência Visual, Professor Wagner Maia, informou que tentou conversar sobre a denúncia da Dra Rosangela Gera com os responsáveis pelo Enem. Informou ainda que decidiu publicar a denúncia em aberto para dar visibilidade e  conseguir adeptos na imprensa, políticos e membros do poder judiciário. “Sobre nossas conversas com o INEP, desde 2015 que sempre tocamos no assunto com eles, existe uma resistência muito grande por parte dos responsáveis, que são terminantemente contra a disponibilização das provas pelo computador, indo contra inclusive o que é feito pelo próprio
CESPE UNB, que prevê em todos os editais de seus concursos esta possibilidade há mais de 15 anos”, afirmou por escrito.

Texto e entrevistas: Adriana do Amaral

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