SP libera atendente terapêutico de alunos com deficiência em escolas estaduais e especialistas apontam possíveis conflitos de responsabilidade

Publicado em: 05/04/2024


Fonte: https://www.estadao.com.br/brasil/vencer-limites/sp-libera-atendente-terapeutico-de-alunos-com-deficiencia-em-escolas-estaduais/ Por Luiz Alexandre Souza Ventura

O governo de SP liberou a presença de atendente pessoal dentro das escolas estaduais para alunos com deficiência, mas é a família do estudante, seja com recursos próprios, por meio do plano de saúde ou do Sistema Único de Saúde (SUS), que deverá providenciar o profissional e bancar esse trabalho.

O Decreto n° 68.415, de 2 de abril de 2024, assinado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), pelo secretário-chefe da Casa Civil, Arthur Luis Pinho de Lima, e pelo secretário de Educação, Renato Feder, foi publicado nesta quarta-feira, 3, no Diário Oficial do Estado de São Paulo.

Questionada pelo blog Vencer Limites sobre a transferência de responsabilidades do governo paulista para as famílias dos alunos com deficiência, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo afirma que o decreto atende a uma demanda da sociedade.

“O decreto não exclui profissionais de apoio escolar que auxiliam na alimentação, higiene e locomoção para alunos com deficiência da rede estadual de São Paulo. A determinação apenas permite que os atendentes pessoais também possam acompanhar o estudante no ambiente escolar, caso seja do interesse de cada família. O atendente pessoal pode ser um familiar do aluno ou um profissional contratado pela família. Ele poderá oferecer cuidados básicos ao estudante com deficiência em seu dia a dia na escola”, esclarece a Seduc.

“A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência define que o poder público deve assegurar a atuação de profissionais de apoio escolar para a garantia do direito à educação, o que é cumprido pela Secretaria da Educação. Em resposta a demandas da comunidade escolar, a pasta autorizou o acesso dos atendentes pessoais, não previsto no âmbito educacional, às unidades de ensino, porém sem interferência nas atividades pedagógicas. Vale reforçar que normas complementares ao decreto serão editadas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo ainda neste semestre”, explica a pasta.

“Todos os alunos elegíveis para a educação especial são avaliados para identificação de apoios, recursos e serviços complementares necessários à rotina escolar, incluindo material, mobiliário, estrutura, recursos pedagógicos e de tecnologia. Além disso, a rede estadual conta com professores do projeto Ensino Colaborativo, que estão presentes em todas as escolas e coordenam as atividades da educação especial. Além das aulas regulares, os alunos elegíveis têm acesso no contraturno às Salas de Recursos, com a orientação de professores especializados”, ressalta a Secretaria de Educação de SP.

Na avaliação de Carolina Videira, especialista em educação inclusiva e presidente da Turma do Jiló, a presença do atendente pessoal dentro da escola pode gerar um conflito de responsabilidades.

“Precisamos tomar muito cuidado com esse decreto. Sabemos que escolas públicas estaduais estavam barrando a entrada de alunos com autismo que precisam de suporte porque as unidades não têm o acompanhante”, destaca Carolina.

“O governo não contratou o número necessário para atender toda a demanda. Então, alunos autistas chegam nas escolas estaduais, não têm suporte e a escola devolve esses alunos para casa, dizendo que, sem alguém para acompanhar, eles não poderiam entrar, ou seja, a mãe tem que ficar com a criança na escola, mas o correto é a escola fornecer o acompanhante”, pontua a especialista.

“Foi feita uma solicitação para crianças que tivessem acompanhante pessoal pudessem entrar com o acompanhante. Quem tem acompanhante pessoal? Quem tem dinheiro para pagar um? Quem não tem, fica sem ir para a escola e fica sem atendimento?”, questiona.

“A LBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – n° 13.146/2015), proíbe transferir para a família a responsabilidade de arcar com esse custo. É um custo do Estado e da escola. Isso vai abrir precedente para a escola privada”, alerta.

“O decreto não traz ou informa qual é a responsabilidade desse atendente pessoal e qual é a responsabilidade do professor. O atendente está preparado para entrar dentro de uma escola pública, para lidar com outras crianças? De quem é a responsabilidade nesse exato momento?”, argumenta. “Precisamos tomar muito cuidado com essa transferência de responsabilidades para as famílias. A responsabilidade é do Estado em treinar professores, contratar o número adequado de profissionais e garantir que todos os alunos possam ir para a escola com seus direitos, os devidos acompanhantes de vida escolar ou especializados, ofertados e custeados pelo governo”, defende Carolina Videira.

A deputada estadual Andrea Werner (PSB), que tem filho autista, defende o Decreto. “É muito importante fazer algumas diferenciações sobre quem são os profissionais e quais são os suportes de responsabilidade da escola quando falamos em acessibilidade. O acompanhante pessoal ou terapêutico, de cara, não substitui nenhum profissional que está presente na Lei Brasileira de Inclusão ou na Lei Berenice Piana. É um profissional adicional. E o decreto deixa claro que sua presença não substitui os profissionais previstos em lei, ou seja, em casos de um aluno com maior nível de suporte que precise de um acompanhamento pessoal integral, além dos profissionais da escola, ele poderá levar seu próprio acompanhante”, afirma a parlamentar

“Outro ponto de suma importância é que esse profissional não tem papel ou função pedagógica e sua participação no cotidiano daquela pessoa não se resume ao ambiente escolar. É alguém que pode acompanhar aquela pessoa em qualquer contexto, incluindo eventos sociais, passeios, terapias e na escola. Assim, não seria correto que a atribuição de fornecimento desse profissional ficasse a cargo da educação pública”, comenta.

“Ainda assim, é importante também destacar que o acompanhante pode ser fornecido pelo SUS. Há precedentes e há pessoas hoje que têm esse acompanhamento fornecido pelo poder público. Também há pessoas que têm esse acompanhamento garantido por planos de saúde diversos ou os que têm por via particular. Nem sempre esse acompanhante é um acompanhante terapêutico, então não estamos falando de um perfil singular de profissional e custo”, diz.

“A presença deste acompanhante, de acordo com o decreto, não pode ser um condicionante para que o aluno frequente as aulas. É algo que fica a critério da família, a partir de uma indicação da equipe multidisciplinar que acompanha aquela pessoa. Se houver essa indicação e a família optar por encontrar um acompanhante, é nesse caso que a sua entrada está autorizada na escola”, completa Andrea Werner.

Para a advogada Camilla Varella, presidente da Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência da OAB SP, o decreto é importante para regularizar a situação da pessoa autista dentro da escola

“A Lei Brasileira de Inclusão fala em alguns tipos diferentes de apoio. Um deles é o pedagógico, que a escola tem que prestar sem nenhum custo porque, obviamente, é a função dela. Isso significa que a escola precisa ter o professor de AEE (Atendimento Educacional Especializado). Entretanto, muitas vezes a criança com autismo, principalmente as de nível de suporte 2 e 3, têm uma grande dificuldade em conseguir manter na escola o que a gente chama de ‘postura de estudante’. Nesse sentido, o acompanhante terapêutico, que não pode ser um custo da escola, precisa entrar na unidade escolar para ajudar a criança a modular seu comportamento. Não podemos esquecer que o autismo é diagnosticado como um transtorno justamente porque interfere nas habilidades sociais da pessoa. Esse aluno precisa do apoio e da adaptação que a escola vai dar pelo atendimento educacional especializado, através do professor ou do AEE. Muitas vezes, principalmente alunos de nível de suporte 2 e 3, têm a necessidade desse acompanhante terapêutico, pessoa que vai ajudá-lo a modular seu comportamento. Esse assistente terapêutico não é uma figura que vai perdurar durante toda a vida escolar da criança. Muitas vezes, ele entra nos primeiros anos para ajudar a criança a entender como ela deve se comportar naquele ambiente, fazer esse apoio, e isso não pode ser repassado para a escola. A gente entende que, tanto a família poderá custear, ou, o médico prescrever esse custeamento pelo plano de saúde, mas, o fato é que as famílias enfrentavam muita dificuldade para que esse profissional pudesse entrar na escola e isso causava um prejuízo enorme para a criança, porque era garantida a inclusão escolar, mas ao mesmo tempo ela não conseguia estar na escola, porque faltava esse apoio. Esse decreto é importante para ajudar a implementar a inclusão de fato das pessoas com deficiência e, mais do que isso, com autismo, nas escolas”, observa a advogada.

Segregação – Camilla Varella não acredita que o decreto seja segregador porque somente pessoas com possibilidade de bancar um atendente tenham acesso a esse profissional.

“Em Direito, o fato de você facultar o ingresso desse profissional custeado pela família não impede de forma alguma, não segrega, o fato de que a Secretaria de Saúde também precisa assumir sua responsabilidade pelas pessoas que são atendidas pelo SUS. Realmente, é um recorte da nossa sociedade. A gente sabe que a sociedade brasileira é extremamente injusta sobre o ponto de vista de divisão de riquezas, mas fato é que a pessoa com recurso recorre ao plano de saúde, ela já tem o profissional individualizado para o filho dela e para a terapia. E isso só é uma extensão dessa realidade. Já a pessoa que depende do SUS e que depende da escola pública, muitas vezes, espera dois anos para ter o diagnóstico. Então, a injustiça já ocorre e isso não é segregacional. Em Direito, você facultar alguém a exercer um direito não me parece ser segregacionista”, avalia a advogada.

Reações na Justiça – Sobre uma ação judicial que derrube o decreto, Camilla Varella pondera que sempre é possível.
“Tudo que é de Direito, quando a gente fala em questões bastante polêmicas, sempre é possível judicializar. A questão não deveria causar um questionamento porque vai contra tudo aquilo que a teoria geral do Direito de que tudo que é facultado não é obrigatório e também não é proibido”, conclui a presidente da Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência da OAB SP.

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