Interseccionalidade: indígenas com deficiência – O que o povo Karitiana ensina para a sociedade

Publicado em: 03/05/2024


Íris Morais Araújo

Por Sergio Gomes para o site da Câmara Paulista de Inclusão

Quando se fala em inclusão, um assunto importante e pouco abordado é a situação de pessoas indígenas com deficiência. De acordo com o Censo de 2022, existem cerca de 1,7 milhão de indígenas no Brasil. No último levantamento realizado em 2005 sobre indígenas com deficiência, foram registradas 126 mil pessoas com deficiência dentro dessa população, representando 17,1%. Utilizando esses dados para uma estimativa atual, poderíamos inferir a existência de aproximadamente 290 mil indígenas com deficiência no país.

Os indígenas frequentemente se deparam com uma maior vulnerabilidade, enfrentando obstáculos no acesso a serviços fundamentais de Saúde e Educação. A pesquisadora Íris Morais Araújo, doutora em Antropologia Social e autora de um estudo importante sobre os Karitiana — um povo indígena que quase desapareceu e hoje tem cerca de 450 membros em Porto Velho, Rondônia — destaca a complexidade de aplicar estatísticas de um povo indígena a outros. Ela explica que há uma lacuna na literatura, mas existem estudos que reconhecem a presença de indígenas com deficiência em várias etnias, como os Guarani no Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo, e os Tupinambá na Bahia. No entanto, ainda são escassas as etnografias que exploram a vida cotidiana desses indivíduos, evidenciando uma interação entre a percepção comunitária de deficiência e o diálogo com o estado e o sistema de saúde.

A população indígena é também muito estigmatizada, principalmente pela imagem do infanticídio que habita o imaginário de muitas pessoas ao se falar sobre pessoas indígenas com deficiência. “Os povos indígenas, eles não estão presos a um modelo cultural do século XVI e práticas que existiam no século XVI, como a guerra, a antropofagia e tudo o mais. Essas práticas do século XVI não existem mais, então não tem nenhum motivo para a gente achar que não exista uma extrema riqueza a respeito da compreensão desses fenômenos nesses povos e eles podem nos ajudar a alargar esses sentidos” explica Íris Araújo.

A formulação de políticas públicas direcionadas para os indígenas com deficiência teriam o potencial de beneficiar significativamente as várias nações originárias que habitam o Brasil. A pesquisadora nos oferece uma explicação sobre este assunto” “O que existem são políticas públicas para todos os brasileiros e, por acaso, as pessoas indígenas também são contempladas. Então, eu acho que o principal é chamar a atenção para o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que é uma política muito antiga e você […] deve saber o quanto o BPC é pouco conhecido fora das famílias que têm usufruto desse benefício. Então, o BPC, eu acho que é fundamental chamar a atenção, e o SUS, porque como é um povo indígena [os Karitiana] que tem a mediação da Secretaria Especial de Saúde Indígena, se houver empenho ele conseguem, mesmo que seja muito lentamente e considerando que tem uma série de problemas, mas essas pessoas, uma hora ou outra, elas acabam se deparando com neurologistas, neuropediatras, fisioterapeutas, nutricionistas e existe sim uma interlocução dessas famílias Karitiana com esses profissionais de saúde que atendem pelo SUS. Eles não atendem só povos indígenas, eles são profissionais de saúde da rede pública. O Brasil, como é um país muito carente de políticas públicas, às vezes a gente se perde e acha que nada acontece e o que eu percebo é que sim, que acontece, inclusive a gente tem dados oficiais do Censo Educacional – então existem escolas indígenas que têm sala multiuso. Se você pegar os dados do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) também, você consegue fazer uma triagem ali dos matriculados em escolas indígenas que têm algum tipo de interlocução com educação especial. Que não foi o caso dos Karitiana, no caso dos Karitiana, não tinha essa política de educação, pelo menos naquele momento não tinha. Então, eu acho que a gente começar a passar um pente fino também nas políticas que a gente tem implementadas e nos dados que a gente dispõe, a gente percebe que é um mundo muito grande.”

Os Karitiana têm uma forma de se organizar e de cuidar das pessoas com deficiência que podem ensinar muito também aos não indígenas, principalmente como lidar com as crianças, uma vez que existem entre os Karitiana, de forma espontânea, atitudes que estimulam a inclusão e o acolhimento das crianças consideradas ‘especiais’*. Segundo Íris Morais, entre os Karitiana, as crianças são estimuladas a brincar uma com as outras de forma que sempre incluam as crianças tidas como ‘especiais’ e há por parte dos membros mais velhos da comunidade, a percepção de que algumas crianças tem mais dificuldade para aprender ou são um pouco mais lentas no processo.

As pessoas com deficiência entre os Karitiana, na vida adulta continuam a receber acolhimento e assistência de outros membros da comunidade “porque no caso dos homens solteiros tem sempre uma irmã que acaba acolhendo. No caso de homens casados a esposa faz esse papel de acolher e de cuidar e no caso das mulheres, as mulheres casadas elas tinham também uma irmã ou uma sobrinha. E as mulheres solteiras que acabavam em algum momento tendo filhos também e tinha esse arranjo de ter uma mãe, uma sobrinha ou uma irmã. Então esse cuidado, ele continua existindo, um pouco em função dessa vida adulta que precisa continuar. É necessário continuar vivendo, mesmo quando essa independência e essa autonomia não seja possível de ser alcançada”.

A percepção predominante na sociedade sobre as populações indígenas é frequentemente marcada por estereótipos que os rotulam como primitivos e atrasados. No entanto, os Karitiana demonstram que têm valiosas lições de inclusão e hospitalidade a oferecer aos não indígenas. Essas práticas de acolhimento e integração são fruto da vivência cotidiana dos Karitiana, e foram estabelecidas sem a necessidade de orientação externa por parte de indivíduos não indígenas.

*Embora não se use mais o termo especial para nos referirmos a pessoas com deficiência, Íris Morais o utiliza por ser a tradução para o português do termo utilizado pelos Karitiana.

Fontes: Dados do Censo 2022 revelam que o Brasil tem 1,7 milhão de indígenas

                O Indígena em Situação de Deficiência: o duplo desafio da inclusão

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